A dor, com o passar do tempo, dilui e produz um efeito anestésico no corpo. Velejamos sem sair do lugar, atracada a coisas que não foram ditas, guardadas no inconsciente como autopreservação: “não posso lidar com isso agora”, “amanhã eu vejo”, “está tudo bem”. Que a verdade seja dita: navegamos a esmo porque perdemos a bússola. Porque os olhos não enxergam terra firme. Porque o horizonte parece o fim do mundo.
O barco acompanha a dança do mar, subindo e descendo. A essa altura o ronco do motor não passa de uma lembrança vaga, e a única alternativa é remar até os braços cederem. Ainda assim, é bonito ser marinheiro porque quando a noite caí a relação entre nós e os astros se estreita.
A mágoa é um corte de pontos frouxos, que sempre rompe a qualquer esforço. Não adianta repouso, ela não precisa de promessas paliativas. Ela é grito mudo, que necessita descansar em paz, viver o luto e, enfim, soterrar seus motivos. Todos somos coveiros, pelo menos uma vez na vida. Afinal, quantos sentimentos enterramos por dia?
Nesse momento é preciso descer do barco, deixar que o corpo afunde com o peso da consciência, que a água salgada estanque o ferimento, que os pés toquem o fundo da alma e os ouvidos sucumbam a pressão. E, quando tudo parecer um caso perdido, abrir os olhos, para enxergar a imagem turva do céu acenando de volta. Algo mudou. Aquela pintura azul vem em nossa direção, radiante, os braços estendidos. Em breve poderemos tocá-la.
É quando o milagre acontece: emergimos, meio zonzos, mas feliz por estarmos vivos. O pulmão sacode com a falta de ar. A princípio, não há explicação lógica, porque a dois segundos atrás batemos o martelo da “justiça” e declaramos prisão perpétua ao nosso sofrimento. Dá uma sensação de vazio, porque o rancor ocupa muito espaço, mais até do que gostaríamos. Mas nada é o que parece, já diziam os antigos: “tudo passa”. Então nos damos conta de que recolhemos a âncora de um cais que poderia ser tudo, menos seguro. E a viagem recomeça, porque a mágoa é um nó difícil de desafazer, mas quando desata, liberta.